20.9.10

Entrega de Si nos Trabalhos - O caminho do Gita (Parte 6)

Síntese da Yoga
Capítulo III
A Yoga dos Trabalhos Divinos: Entrega de Si nos trabalhos ― O Caminho do Gita.
Parte 6


Comentários
Nesse fragmento Sri Aurobindo busca no Bhagavad Gita o fundamento de uma ética que direcione nosso esforço rumo a perfeição em nossas ações. Nisso foi observado os três segredos da ação baseados no Gita:
• Equanimidade: Aprender a suportar os choques do mundo sem se abalar;
• Renûncia de todo desejo aos frutos de nossos trabalhos;
• A ação feita como uma oferenda ao Senhor Supremo;

[Os três segredos do gita para o Karmayogi ou Sobre o desapego aos frutos do trabalho]
Mas por quais medidas práticas de autodisciplina que podemos chegar a essa consumação? (referência ao Texto 5 deste capítulo)

[OS DOIS NÓS DA AÇÃO: O DESEJO E O SENSO DE EGO]
A eliminação de toda atividade egoísta e de sua fundação, a consciência egoísta, é claramente a chave para a consumação que desejamos. E uma vez que no caminho das obras a ação é o nó que temos primeiro que soltar, devemos nos esforçar para soltá-lo onde ele está centralmente ligado, no desejo e no ego; pois caso contrário, nós iremos cortar apenas fios dispersos e não o coração de nossa servidão. Estes são os dois nós de nossa sujeição a esta ignorante e dividida Natureza, o desejo e o senso de ego. E esses dois desejos têm a sua terra natal nas emoções, sensações e instintos e de lá afetam o pensamento e vontade; De fato o senso de ego vive nesses movimentos, mas ele lança as suas profundas raízes também na mente pensante e na sua vontade e é lá que se torna totalmente consciente de si. Estes são os obscuros poderes gêmeos da obsessiva Ignorância mundial que nós temos que iluminar e eliminar.

[1° SEGREDO: FAZER O TRABALHO QUE DEVE SER FEITO SEM QUALQUER DESEJO PELOS SEUS FRUTOS]
No campo da ação o desejo toma muitas formas, mas o mais poderoso de todos é o ser vital apegado ou buscando pelos frutos de nossos trabalhos. O fruto que nós cobiçamos pode ser uma recompensa de prazer interno; que pode ser a realização de alguma idéia preferida, ou alguma estimada vontade, ou a satisfação das emoções egoístas ou ainda o orgulho do sucesso das nossas maiores esperanças e ambições. Ou pode ser uma recompensa externa, uma recompensa inteiramente material, ― riqueza, posição, honra, vitória, felicidade ou qualquer outra realização de desejo vital ou físico. Mas todos são igualmente atrativos ao egoísmo que nos prende. Sempre essas satisfações nos iludem com a sensação de domínio e a idéia de liberdade, enquanto na verdade estamos com arreios e guiados, montados ou chicoteados por alguma grosseira ou sutil, nobres ou ignóbil forma de cego Desejo que impulsiona o mundo. Portanto a primeira regra de ação estabelecida pelo Gita é fazer o trabalho que deve ser feito sem qualquer desejo pelos seus frutos, niskama karma.

[O GITA E SUA TRANSCENDENTE MORAL, FRENTE AO NOSSO RELATIVISMO MORAL]
Uma regra simples em aparência, e ainda como é difícil de realizar com alguma semelhança a absoluta sinceridade e totalidade libertadora! Na maior parte das nossas ações nós usamos o princípio, ainda que muito poucos usem algum e então mesmo a maioria, como uma espécie de contraposição ao princípio normal do desejo e para atenuar a extrema atividade da tirania dos impulsos. Na melhor das hipóteses nós estamos satisfeitos se chegarmos a um egoísmo modificado e disciplinado, nem tão chocante para nosso senso moral, nem tão brutalmente ofensivo aos outros. E para nossa parcial autodisciplina nós damos vários nomes e formas; nós nos habituamos pela prática do senso de dever, de uma firme fidelidade aos princípios, uma fortaleza estóica(1) ou uma resignação religiosa, uma silenciosa ou extática submissão a vontade de Deus. Mas não é destas coisas que o Gita tem em mente, embora úteis em seu devido lugar; ele visa a algo absoluto, perfeito, firme, uma virada, uma atitude que vai mudar todo o equilíbrio da alma. Não o controle mental dos impulsos vitais é que governará, mas a forte imobilidade de um espírito imortal.

[2° SEGREDO: EQUANIMIDADE]
O teste que estabelece é uma absoluta equanimidade da mente e do coração para todos os resultados, para todas as reações, a todos os acontecimentos. Seja boa sorte e má sorte, seja respeito e insulto, seja reputação e vergonha, seja vitória e derrota, seja evento agradáveis e eventos tristes não só nos deixam inabalados, mas intocados; livre nas emoções, livre nas reações nervosas, livre nas observações mentais, não respondendo a menor perturbação ou vibração em qualquer ponto da natureza, então nós temos a liberação absoluta de que o Gita nos aponta, mas não o contrário. A menor reação é uma prova de que a disciplina é imperfeita e que alguma parte de nós aceita a ignorância e a servidão como sua lei e ainda se agarra à velha natureza. Nossa conquista de si mesmo está apenas parcialmente realizada; é ainda imperfeita ou irreal em algum trecho, ou parte ou no mínimo ponto da base de nossa natureza. E essa pedrinha de imperfeição pode derrubar toda a realização do Yoga!

[CONFUSÕES SOBRE A EQUANIMIDADE: OS ASPECTOS DE UMA FALSA EQUANIMIDADE, BASEADA NO EGOÍSMO]
Existem certas semelhanças entre um espírito de equanimidade que não deve ser confundida com a profunda e vasta equanimidade espiritual que o Gita ensina. Há uma equanimidade do resignado desapontamento, uma equanimidade do orgulho, uma igualdade de dureza e indiferença: todas estas são egoístas em sua natureza. Inevitavelmente, elas vêm no curso da sadhana (2), mas devem ser rejeitadas ou transformadas em verdadeira quietude. Há  também, em um nível mais elevado, a equanimidade do estóico (1), a equanimidade de uma devotada resignação ou de um sábio desapego, a equanimidade de uma alma desinteressada pelo mundo e indiferente às suas obras. Estes também são insuficientes; pode ser uma primeira abordagem, mas elas são na maioria das fases iniciais da alma somente uma imperfeita preparação mental para nossa entrada na verdadeira e absoluta auto-existente equanimidade ampla do espírito.

[OS PASSOS PARA ALCANÇAR A EQUANIMIDADE]
Pois é certo que tão grande resultado não pode ser alcançado imediatamente e sem quaisquer estágios anteriores. No primeiro nós temos que aprender a suportar os choques do mundo com a parte central do nosso ser intocável e silenciosa, mesmo que a superfície da mente, do coração e da vida sejam fortemente abalada; imóvel lá na base da nossa vida, nós temos que separar a alma observadora desses trabalhos externos da nossa natureza. Depois, estendendo esta calma e firmeza da alma desapegada para seus instrumentos, será tornará lentamente possível irradiar a paz a partir do centro luminoso para as periferias mais escuras. Nesse processo, nós podemos ter a passageira ajuda de muitas fases menores; um certo estoicismo, uma certa calma filosofia, uma certa exaltação religiosa pode nos ajudar em direção a alguma proximidade do nosso propósito, ou podemos chamar ainda mais forte e exaltado os ainda úteis poderes da nossa natureza mental. No final nós temos que descarta-los ou transforma-los e chegar assim em uma total equanimidade, uma perfeita paz interna auto-existente e até mesmo, se nós conseguirmos, um indiscutível, auto-equilibrado e espontâneo deleite em todos os nossos ser.

[3° SEGREDO: TODA A AÇÃO DEVE SER FEITA DIRECIONADA A DEUS]
Mas como então vamos continuar a agir? Pois normalmente o ser humano age porque tem um desejo ou sente uma precisão ou necessidade mental, vital ou física; ele é impulsionado pelas necessidades do corpo, pelo desejo de riquezas, honrarias ou fama, ou pela ânsia de satisfação pessoal da mente ou do coração, ou pela ânsia de poder ou prazer. Ou ele é agarrado e empurrado por sobre uma necessidade moral ou, pelo menos, a necessidade ou o desejo de tornar as suas idéias ou os seus ideais ou a sua vontade ou o seu partido ou seu país ou seus deuses prevalecerem no mundo. Se nenhum desses desejos nem qualquer outro deve ser a mola da nossa ação, irá parecer como se todo incentivo e força motriz tenham sido removidos e ação deverá necessariamente cessar. O Gita responde com seu terceiro grande segredo da vida divina. Toda a ação deve ser feita mais e mais direcionada a Deus e finalmente uma consciência possuída por Deus; nossas obras devem ser um sacrifício ao Divino e no final uma entrega de todo o ser, mente, vontade, coração, sentidos, vida e corpo para o Uno, devendo fazer do amor de Deus e serviço de Deus o nosso único motivo. Esta transformação da força motriz do caráter das obras é de fato sua idéia mestra; que é a base de sua incomparável síntese do trabalho, do amor e do conhecimento. No final não o desejo, mas a vontade conscientemente sentida do Eterno permanecerá como o único motor da nossa ação, o único autor da sua iniciativa.

[AS TRÊS ABORDAGENS DO KARMAYOGA NO GITA]
Equanimidade, a renúncia de todo desejo pelo fruto de nossos trabalhos, ação feita como um sacrifício ao Senhor supremo da nossa natureza e de toda a natureza, ― estas são as três primeiras abordagens no caminho do Karmayoga do Gita.


(1) Estoicismo: Escola filosófica que influenciou bastante Roma. Suas idéias visam ensinar ao homem a simplicidade na ação, a prática da virtude a qualquer preço, a austeridade física, a auto-disciplina. Imperadores como Marco Aurélio, políticos como Sêneca e escravos como Epíteto são os expoentes desta linha filosófica.
(2) Sadhana: Práticas; disciplinas espirituais; austeridade.



Retirado do livro: Synthesis of Yoga
Capítula: The Yoga of Divine Works: Self-Surrender in Works ― The Way of Gita.
pag. 101


Nenhum comentário: